terça-feira, maio 08, 2007

O epitógio de platina - 2. O enQUADRamento

Já seria bastante chocante que os critérios para progressão na carreira (qualquer que ela seja) fossem paralelos aos do futebol ou às das lutas de circo romano. Que sejam ainda mais arbitrários, brada aos céus! É que quer o futebol quer as lutas de circo romano existem para gáudio do povo. São espectáculo! Será admissível que os critéios que determinam a progressão na carreira de pessoas dedicadas, trabalhadoras, que formam os Quadros Superiores deste país, estejam sujeitas ao completo livre arbítrio, e que sejam, muitas vezes, decididas à mesa do café no meio de grandes galhofas? Talvez isso explique o estado deste país e o modo de funcionamento de outras Instituições também vitais para o país.

No caso específico dos “concursos” para Professor Associado o caso é ainda mais dramático: os Professores Auxiliares são contratados Além do Quadro. São caso único na Função Pública: não conheço em mais sítio nenhum uma classe de trabalhadores do Estado que sendo altamente qualificados, cumprindo todas as etapas existentes de progressão na carreira (e na maior parte dos casos ultrapassando largamente o mínimo exigível), permaneçam toda a vida sem pertencerem ao Quadro.

Há na Universidade quem defenda que esta situação de vínculo precário dos Professores Auxiliares é uma força motriz importante para a conduzir à Excelência. Sobre esta opinião “peregrina” já teci em tempos alguns comentários num texto intitulado “Os cães de Pavlov” publicado neste Blog. Porque o tema, infelizmente, continua actual, vou tecer mais alguns:

Se a Excelência só se alcança através de uma competição desenfreada (eu prefiro a competência à competicão; gostos...) então porque pertencem os Professores catedráticos e Associados ao Quadro das respectivas Instituições? Se querem competição à séria, então todos os anos devem ser postos em causa. Deve haver seriação, a nível do país, todos os anos (vamos lá, de dois em dois anos...). Seriação de TODOS os Docentes do Ensino Superior, (que deveria ter raíz etimológica em duas palavras: série e séria) e que se basearia em critérios detalhados, por área, publicados em Diário da República. Se X docentes deveriam ser catedráticos, seriam então os X da frente nesse ano. Os Y seguintes seriam Professores Associados. A distribuição por Escolas obedeceria a regras semelhantes às da escolha da especialidade para os Internos de Medicina: o 1º classificado escolheria a Escola que quisesse, o 2º escolheria um dos lugares restantes e assim sucessivamente. Se a competição desenfreada gera a Excelência, chegaríamos lá num ápice. Duvido é que algum Prof. Catedrático ou Associado esteja de acordo com esta proposta...

O epitógio de platina - 1. As regras do jogo

Imaginemos um torneio de futebol criado para que fosse ganho pela equipa A.

Os árbitros eram escolhidos apenas após serem conhecidas as restantes equipas B, C, D, etc.

Imaginemos ainda que as equipas entravam em campo sem conhecerem as regras do jogo: consoante o resultado que conviesse à equipa A, o critério (conhecido pelas equipas apenas no fim da partida...) que ditaria a vitória de uma dada equipa seria:

  1. - Num jogo, ganharia a equipa que a arbitragem decidisse que ganhava e pronto! Eventualmente se lhe pedissem muito que justificasse, diria que era porque tinham equipamentos muito bonitos.
  2. - Noutro, ganharia a equipa que tivesse a bola durante mais tempo apesar de ter marcado menos golos.
  3. - Noutro, ganharia a equipa que tivesse marcado mais cantos apesar de ter marcado menos golos.
  4. - Noutro ainda, ganharia a equipa que fizesse mais faltas sobre o adversário mesmo que isso não lhe tivesse servido para marcar mais golos.
  5. - Noutro, ganharia a equipa com maior número de foras-de-jogo porque isso significava maior empreendedorismo...

Penso que poderia dar muitos mais exemplos, tão ou mais disparatados do que estes, se a minha “ciência” futebolística fosse maior.

Tanto quanto sei, e apesar das reclamações que recaem sobre as arbitragens, dos “Apitos Dourados” e quejandos, não me consta que alguma vez se tenha chegado ao extremo que aqui imaginei.

Ora bem, nos concusos para Professor Associado e Catedrático das nossas Universidades Públicas, é isto que se passa. Sem tirar nem pôr:

  1. - Num concurso ganha o candidato mais novo porque é um jovem muito “prometedor”. Claro que, como os lugares de Professor Associado e de Catedrático são lugares de quadro, ninguém vai depois verificar se as promessas se cumpriram.
  2. – Noutro, ganha o mais velho, como “prémio” de carreira.
  3. - Noutro ganha o que até à altura do concurso teve mais projectos e (portanto) mais estudantes de Doutoramento, mesmo que isso não se tenha traduzido num maior número de publicações; bem pelo contrário.
  4. - Noutro concurso ganha o que tiver maior número total de publicações.
  5. - Noutro ganha o que tiver maior número de publicações no último ano.
  6. - Noutro concurso ganha o que fez o melhor relatório da cadeira (prova a que os restantes candidatos não têm acesso).
  7. – Noutro, ganha.... o(a) que teve o padrinho mais activo.

Ao contrário das regras de 1 a 5 que foram um exercício de pura imaginação, as regras de a. a g. já foram esgrimidas por alguns elementos dos júris nos vários concursos a que concorri. Concluindo: a regra é não haver critérios e imperar o livre arbítrio. Nas Universidades Públicas, no que diz respeito à carreira dos Professores, não passámos da era do polegar do Imperador...

A lenta agonia da cultura

O livro sobre História e Antologia da Literatura Portuguesa (1º Vol. séc. XIII a XV), da autoria de Isabel Allegro Magalhães foi lançado há dias na Gulbenkian (2 Maio 2007). Com um extraordinário faro arqueológico, a autora oferece-nos belos textos de crítica literária nunca antes editados. Bem hajas Isabel! Na ocasião, a Profª Maria Alzira Seixo observou que, nos anos sessenta, a nossa geração sabia que a informação, o saber e a cultura estavam ali, do outro lado do muro, e só necessitávamos de lá ir, geralmente com a preciosa ajuda das bolsas da Gulbenkian. Hoje temos tudo aqui, ao pé de nós, e é como se nada existisse, dizia ela.
É verdade, a cultura já não circula como dantes. Não vale a pena ficarmos angustiados ou mesmo perplexos, como há dias escrevia o E. Prado Coelho (Público, 4 Maio 2007), com tal conclusão.
Antes poderíamos meditar sobre as razões que conduziram a tal hecatombe estética e poética. Certamente que não existem respostas claras, mas podemos reflectir nalgumas aproximações.
Escrevia há dias neste blog sobre aquele momento muito palavroso do referendo sobre o aborto e dizia que Deus tinha desaparecido do nosso mundo ocidental. Já não temos admiração por nada nem por ninguém. Quem detém no Mundo a afeição e simpatia de todos? O Nelson Mandela? Parece evidente que hoje já ninguém é detentor do respeito de outrem.
A Ciência ajudou-nos a destruir a nossa mente primitiva, ao mesmo tempo que a nossa alma ingénua e criativa. As razões científicas sobre a ordem das coisas, sobre a Natureza, quebraram a beleza do místico, do inexplicável, do assombroso.
A nossa candura pela beleza das coisas tem a má fama de um selvagem incrédulo.
Se toda a Natureza tem uma explicação científica, para que necessitamos nós da religião? Para nada! É a conclusão dramática de quem intui que o ser humano sem capacidade de sonhar desumaniza.
Aparentemente as religiões perderam toda a credibilidade. A Igreja Católica coloca hoje anúncios para angariar jovens aprendizes de Padre.
A nossa cultura ocidental conseguiu abolir Deus, o poder do Rei, a hierarquia e agora, lentamente, a cultura agoniza estagnada. E aqui estamos nós, órfãos de tudo e filhos de nada.
Se calhar estamos a viver a nossa Idade Média, a tal época promissora de um novo Renascimento cultural. Mas não se vislumbra como. O que existiu no séc. XVI teve como corolário a Revolução Francesa, os Direitos do Homem e posteriormente, a Democracia representativa.
Incomoda-me pensar que esta última nos obriga a nivelar por baixo o nosso sentido estético e poético. Depois de sermos todos divinos à boa maneira pagã tornámo-nos todos democraticamente iguais.
Mas agora trata-se de um novo paganismo na era da ciência e do desenvolvimento tecnológico. Acreditar no incrível, nas coisas assombrosas, na invasão do mundo pelas rosas desapareceu das nossas almas poéticas.
Tudo tem uma explicação científica no nosso mundo cartesiano. Mesmo quando somos obrigados a sair do nosso referencial de pensamento para compreender o astro de outra galáxia, a 120 anos luz, que se demonstra existir hoje, alguns milhares de anos antes de Cristo! Mas não é uma coisa mística! É ciência!
Não quero aqui dizer que o saber das ciências exactas provoca estagnação na circulação da cultura. Quero apenas dizer que as instituições científicas, tal como surgiram no séc. XVIII, transformaram a sabedoria numa coisa ímpia. Todos nós nos vergamos aos axiomas oriundos de instituições universitárias autogâmicas, isto é, com práticas não universais.
Por outro lado, hoje enredamo-nos nos subtendidos da História. Por exemplo, os textos que podem fazer História desaparecem num nebuloso Index português. Parece que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) não sabe do paradeiro de milhares de documentos sobre o controle de fronteiras relativos ao período entre 1919 e 1975. Todos os documentos sobre os refugiados que por aqui passaram, nomeadamente os judeus fugidos da II Guerra Mundial, desapareceram de um sótão da SEF. Por coincidência, esta história recorda-me uma outra bastante singular.
Habitei vários anos ao lado de um velho edifício estatal abandonado e em total degradação. Um dia, inesperadamente, as portas encontravam-se abertas para a rua e pude observar o seu interior. Constatei a presença de alguns funcionários que se entretinham a encher enormes sacos de lixo com tiras de papel, vindos de uma máquina trituradora. Disseram-me que estavam a limpar aquele lugar que tinha pertencido ao antigo Departamento ou Secretaria de Estado da Imigração.
Vivíamos naquela época em que a comunidade judaica internacional incomodava todo o mundo, e também Portugal, sobre o ouro dos judeus espoliados pela Alemanha nazi. A questão era a de saber se o Banco de Portugal teria também esse ouro sujo de guerra, silenciado por Salazar. Como é óbvio a resposta foi negativa.
Não sei se há interligação entre estes dois sótãos, mas que há bruxas, há!
Como dizia Tomás Carlyle, ouro quer dizer heroicidade. Nós destruímos o ouro e agora queremos que existam heróis.