quinta-feira, abril 20, 2006

O irracional e o aborto

O irracional e o aborto

Há muito tempo enviei uma carta a um amigo reflectindo sobre os argumentos de João Pereira Coutinho num artigo sobre “Vida moderna”, publicado no Independente a 28 Nov. 2003. Dizia mais ou menos assim.

Penso que é intelectualmente saudável tentar compreender os argumentos dos que estão situados do outro lado da nossa fronteira ideológica. A questão do aborto e do direito à vida serve exemplarmente para testar os métodos de raciocínio de ambos os lados, da esquerda e da direita.

João Pereira Coutinho polemiza com base nos seus ideais da direita liberal e afirma que

“o direito à vida - o direito a que uma promessa de vida cumpra o seu destino- deve ter prevalência sobre a expressão da nossa autonomia”.

A questão essencial é a de saber qual o fundamento ético, científico, legal ou político - universal- que está na base da aprovação ou da criminalização de actos individuais.

Racionalmente posso um dia vir a admitir que a minha opinião, contrária àquela, possa estar errada. Mas o autor não consegue convencer-me com o seu raciocínio.

Para mim é incompreensível pretender provar que a vida, ou o direito à vida, é anterior e superior à expressão da nossa autonomia. Porque não consigo discernir a existência de um ser, definido como humano, destituído de vontade. Admito que a prosa é bonita e de uma sensibilidade tocante (“o direito a que uma promessa de vida cumpra o seu destino”), mas o raciocínio em que se fundamenta não está correcto.

Também não consigo entender que a única resposta a dar à questão metafísica da vida tenha de ser “radicalmente política”, isto é, oriunda “do Estado constituído numa sociedade civilizada”. Isto só seria correcto se admitissemos que os actos políticos são oriundos da ética, ou seja, que a ética e a política são uma e a mesma coisa. [Não necessitamos de ir muito atrás na História contemporânea ou na História das civilizações para compreendermos que os valores políticos não são imutáveis.]

Não se podem invocar razões secundárias baseadas nos “equilíbrios frágeis” de uma comunidade como suporte de leis que se pretendem universais. O direito à vida a inscrever como lei fundamental de um Estado é de aplicação restrita, aplicável apenas às mulheres desse Estado. Por outras palavras, a comunidade, o Estado, faz inscrever uma vontade em letra de lei a qual é superior a outra vontade, a das mulheres, penalizando-as por um acto autónomo da sua vontade. Isto só é possível se os sujeitos da acção a criminalizar forem destituídos de vontade e de descirnimento, isto é, politicamente não autónomos.

Como diz o George Steiner, se um raciocínio é redutor, exemplificando aquilo que não consegue generalizar, é porque os argumentos não são universais.

Um exemplo deste tipo de raciocínio chegou-nos recentemente do Parlamento francês. Este legislou sobre as sancções a aplicar aos automobilistas que, involuntariamente, provocassem a morte de mulheres grávidas. De imediato se pretedeu que este raciocínio fosse extensivo a todas as grávidas. Pois se um acto involuntário do desgraçado de um automobilista era tão severamente penalizado então, por maioria de razão, seria penalizado o acto voluntário de uma futura mãe que abortasse. Este raciocínio abortou naturalmente.

O aborto é praticado desde a noite dos tempos, em todas as civilizações, sem regras e de forma aleatória. A Natureza às vezes apresenta-se-nos sem regras.

O que deveria ser intelectualmente inadmissível é fazermos de conta que no decurso civilizacional, os únicos seres capazes de gerar ou interromper a vida tenham sempre pertencido à humanidade-essa humanidade de seres dotados de vontade autónoma e com direitos universais.

Só uma mãe pode decidir como, quando e com quem gerar ou não vida. É em nome desse dado de natura que as suas detentoras foram subjugadas. Foi o meio escolhido há séculos por uma civilização, “por forma a acautelar a satisfação dos seus interesses futuros”.

Há uma classificação, e não só de género, explícita ou codificada, dos seres inteligíveis que cabem na humanidade e que podem ser nomeados.

Não existem seres humanos sem crenças porque não existem seres humanos sem cultura. O direito à vida é uma crença, com base moral, que não se fundamenta em nenhum raciocínio empírico. Naturalmente que se pode e deve discutir-se as crenças de cada um.

Deve admitir-se que existem princípios morais fundadores, não sujeitos a transacções políticas, que constituem o espírito da nossa pertença à humanidade e que estão muito para além do nosso corpo, da nossa mente construída ou da nossa alma criativa.

Teresa Sá e Melo, Lisboa 20 de Abril de 2006

4 Comentários:

At 5:51 da manhã, Blogger Filipe Castro said...

Como a maioria das pessoas, eu acho que sou tendencialmente contra o aborto, mas nao me passaria impor a minha opiniao a todas as mulheres do meu pais. Varias coisas me fazem confusao na posicao dos farsolas que propoem a criminalizacao do aborto:

1) esta mais que demosntrado que a educacao sexual e um meio infinitamente mais eficaz para diminuir os abortos que a repressao policial (vejam-se as estatistas, por exemplo, holandesa e portuguesa);

2) são sempre padres, rapazes, ou umas pre-mamãs catolicas (uma das quais, minha amiga, por acaso já fez um aborto ela propria) a proporem que se metam na prisao as desgracadas a quem foi negada educacao, planeamento familiar, acesso a contracepcao, etc.; (ou aquele casalinho de ex-ministros do PP que, como se sabe, nao corre o risco de engravidar por mais que se amem em cima um do outro...)

3) esta gente so se preocupa com as "criancas" ate elas nascerem! depois acham que deve ser o "mercado" (um eufemismo para designar a vontade dos oligarcas que nos governam) a definir se as criancas comem, se tem educacao, se veem os pais bancarios-nao-sindicalizados mais de uma hora por dia, etc.

Sao estes idiotas que nos vem defender "a familia" como o valor principal da sociedade e mais nao sei o que...

 
At 9:55 da manhã, Blogger Espectadores said...

Cara Teresa Sá e Melo,

Tendo lido este seu texto, gostaria de a convidar a ler o meu argumentário contra o direito ao aborto, que pode encontrar aqui:

http://www.espectadores.blogspot.com

O texto está disponível em duas versões, uma resumida (23 páginas), e outra completa (104 págnas). É normal que prefira começar por ler a resumida, mas se encontrar algo por explicar, ou algo com o qual discorde, por favor, veja o capitulo correspondente no texto completo, onde encontrará todas as questões estudadas ao pormenor.
Defendo que é possível demonstrar racionalmente o erro ético de abortar em qualquer fase da gravidez, exceptuando-se os casos de paradoxo ético (opção entre a vida da mãe e a vida do filho).
Penso que no meu texto encontrará objecções que podem ser pertinentes para o seu ponto de vista.
Teria todo o gosto em receber os seus comentários, visto que é raro encontrar quem goste de discutir a ética do aborto, evitando os escolhos da política e as dificuldades da argumentação religiosa, que pela sua natureza, não é valorizada por todos do mesmo modo.

Cumprimentos,

Bernardo Motta

 
At 9:58 da manhã, Blogger Espectadores said...

Caro Filipe,

Eu considero que o aborto deve ser criminalizado, porque se trata de um crime. Foi o que procurei argumentar no documento que disponibilizo no meu blogue.
A minha argumentação é racional e objectiva.
Visto que eu assumo esta posição, deverei ser um dos "farsolas".
É pena que tantas pessoas tentem disfarçar a sua evidente ignorância em matéria de Ética do Aborto usando "argumentação" infantil como o insulto ou a injúria...

 
At 12:09 da tarde, Blogger André said...

Concordo com tudo o que escreve.
Já agora, também é da opinião que esta decisão...este referendo, deveria incidir só na vontade da mulher, ou seja, deveriam ser só as mulheres a votar neste referendo?

 

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