sábado, dezembro 23, 2006

O aborto no Mundo e as práticas actuais - II


Um exercício igualmente didáctico que a consulta das estatísticas a nível mundial disponíveis permite efectuar, diz respeito ao número médio de IVGs efectuados por mulher, calculado multiplicando por 30 e dividindo por mil o número de abortos por mil mulheres em idade fértil (dos 15 aos 44 anos) realizados em países com estatísticas de confiança.

Ficaram de fora da análise países como o Vietname ou a Roménia, em que apenas há dados sobre as IVGs realizadas em organismos estatais, mas que mesmo apenas com estes dados apresentam valores muito altos, 2,5 e 2,34, respectivamente, que reflectem no primeiro caso o baixo grau de eficácia do método contraceptivo mais utilizado neste país, o DIU, e no segundo, assim como em quase todas as ex-repúblicas soviéticas, não só vestígios do conservadorismo comunista em relação a políticas de educação sexual como especialmente o difícil acesso a métodos contraceptivos.

De qualquer forma, este exercício permite-nos concluir que, excluindo Cuba - onde o embargo torna os contraceptivos mais fiáveis de difícil acesso - e as ex-Repúblicas soviéticas pelas razões apontadas, nos países ocidentais em média uma em cada duas mulheres realizará um aborto ao longo da vida. Mesmo nos países que apresentam as taxas mais baixas a nível mundial - Bélgica, Holanda, Alemanha e Suiça - quase 1 em cada 4 mulheres interromperá uma gravidez indesejada.

Isto é, o aborto não é uma questão residual como pretende Vasco Pulido Valente, o nosso fazedor de opinião recentemente transformado em cruzado na inexistente guerra ao Natal! O aborto é uma realidade que não podemos ignorar pretendendo que apenas fúteis e irresponsáveis mulheres a ele recorrem! Mesmo utilizando «religiosamente» os contraceptivos mais eficientes todas as mulheres fertéis têm uma probabilidade, calculada de forma conservadora, de pelo menos 1,5 gravidezes indesejadas!


Especialmente didáctico é o cálculo deste parâmetro - o número médio de IVGs efectuados por mulher - nos países da América latina onde, por pressões religiosas, o aborto é criminalizado. Embora a estimativa do número total de abortos nestes países, baseada no número de mulheres hospitalizadas ou mortas em consequência de um aborto clandestino, possa pecar por defeito, os valores calculados - referentes à década de 90 - falam por si. No gráfico estão representadas em dois tons de azul estimativas assentes em diferentes formas de cálculo da percentagem de mulheres que necessitam recorrer aos serviços de saúde após um aborto clandestino.

De acordo com os dados, nestes países onde a influência do catolicismo se traduz na criminalização do aborto - nalguns mesmo para salvar a vida da mulher* -, todas as mulheres realizarão em média entre 1 a 1,5 abortos ao longo da vida!

Isto é, nestes países em que o aborto é criminalizado, a taxa estimada de aborto por mulher, mesmo a mais conservadora - que assume que 67% das mulheres sujeitas a um aborto clandestino recorrem a um hospital público na sequência de complicações pós-aborto - é francamente superior, com as excepções já referidas por anormalmente altas, à que se verifica em países onde este é permitido!

*Recordo que na origem da actual lei que proibe qualquer tipo de aborto na Nicarágua mesmo em caso de perigo de vida da mulher, estão as pressões da Igreja católica. No rescaldo da mui mediática interrupção da gravidez de uma criança de 8 anos, grávida na sequência de violação, a Igreja, pela voz do bispo Abelardo Mata, declarou ser o aborto «um crime abominável mesmo quando disfarçado por atenuantes pseudo-humanitárias como aborto terapêutico».

O poder da Igreja Católica na Nicarágua, especialmente efectivo em tempo de eleições, resultou numa lei que é uma sentença de morte para muitas mulheres neste país. Jazmina del Carmen Bojorge, uma jovem de 18 anos que morreu devido a complicações de uma gravidez, foi apenas a primeira vítima desta tão católica lei!

(Publicado simultaneamente no Diário Ateísta)

O aborto no Mundo e as práticas actuais


Um dos papões agitados pelos pró-penalização consiste num lamento, insustentado em factos, de que se a IVG for despenalizada em Portugal o número de gravidezes interrompidas dispara e as mulheres abortarão pelas mais fúteis razões. A não ser que todos tenham lido este artigo da Onion e tomado uma sátira pela realidade, este espantalho não abona muito da opinião sobre a mulher dos pró-penalização, que concordam com o aborto por opção médica mas fantasiam sobre a calamidade moral que será «conceder» à mulher o direito de decisão sobre uma IVG!

Na realidade, os dados disponibilizados por uma série de organismos, incluindo a ONU, indicam que se uma mulher considera não ter condições para levar a termo uma gravidez a interrompe. Legalmente e em segurança nos países onde tal é permitido, em condições muitas vezes desumanas e atentórias da dignidade, saúde e vida da mulher, nos países onde o peso político da religião se traduz na criminalização de «pecados».

Isto é, a criminalização do aborto não é impedimento para que este se realize! Para além de acesso a contraceptivos fiáveis e a educação sexual, o único outro parâmetro que parece influenciar o número de abortos realizados a nível mundial é a segurança no emprego e a segurança económica.

Assim, os Estados Unidos sob Bush, o grande cruzado pela «vida» e paladino de óvulos, espermatozóides e células estaminais, viram reverter drasticamente a tendência de diminuição do número total de abortos - menos 17.4% nos anos 90 atingindo um mínimo histórico no final da década de 90. De facto, os dados estatísticos disponíveis indicam um aumento do número de abortos nos Estados Unidos, mais 52 000 em 2002 do que seria expectável e um aumento ainda maior nos anos seguintes!

De qualquer forma, e porque o exercício é didáctico, resolvi investigar as estatísticas disponíveis a nível mundial sobre a evolução do número de abortos nos países em que este foi legalizado. O gráfico com que se inicia o post é ilustrativo do que encontrei! Não se vê qualquer tendência para a subida do número de abortos nos países escandinavos e na República Checa há uma diminuição drástica para cerca de um quarto do número de abortos praticados no ínicio da década de 90 e para um quinto se nos reportarmos à década de 80 - o que reflecte uma melhor educação sexual e um mais fácil acesso a contraceptivos.

De igual forma, o espantalho nove semanas e meia não tem razão de ser! Na realidade, tal como em França, a esmagadora maioria dos abortos são realizados antes das nove semanas nos países para que encontrei estatísticas discriminadas, sendo os poucos abortos tardios realizados por razões médicas - as mesmas que já estão contempladas na nossa lei actual!

Uma das razões para que as IVGs sejam realizadas cada vez mais cedo é o recurso a fármacos, mifepristone (a pílula RU-486) e outros, que são utilizados na maioria das intervenções realizadas nos países onde foram introduzidos - em 2005, 51% na Suécia, 52% na Noruega, 53% na Finlândia, na República Checa o procedimento não é ainda autorizado - que podem ser apenas utilizados no máximo até às 9 semanas e preferencialmente até às 7 semanas.

Por exemplo na Noruega, mais de metade dos aborto realizam-se antes das 7 semanas - e 71,5 e 82,5% antes das 8 e 9 semanas, respectivamente-, como se pode apreciar no gráfico seguinte. O aborto na Noruega é permitido por opção da mulher até às 12 semanas, depois deste limite é apenas permitido por decisão médica.Este exercício permite concluir que a despenalização do aborto não só permite intervenções mais cedo, sobre embriões e não fetos, como normalmente conduz a uma diminuição da taxa de aborto - já que o sistema de saúde em causa tem acesso e pode esclarecer as mulheres que abortam sobre métodos contraceptivos. Mas principalmente permite que as mulheres o possam realizar em condições de segurança, sem riscos para a sáude ou mesmo para a vida, e sem o trauma psicológico de terem de recorrer a um sub-mundo marginal, arriscando-se ainda a humilhação na praça pública e devassa da sua vida íntima!


(Publicado simultaneamente no Diário Ateísta)

O aborto em França e as práticas actuais

No passado dia 17 de Dezembro o Movimento Médicos pela Escolha realizou uma conferência dedicada ao tema «O aborto em França e as práticas actuais», em que participou a ginecologista/obstreta Elizabeth Aubény, membro fundador e presidente honorária da FIAPAC (Federacion Internacionale des Associations de Professionals de Avortement et de la Contracepcion).

O testemunho da médica sobre a realidade da prática do aborto num país onde este é legal há três décadas permite desfazer alguns dos mitos sobre o tema.

Nomeadamente, demonstra inequivocamente que a legalização/despenalização não conduz, como pretendem muitos, a um aumento do número de abortos realizados, como se pode confirmar nesta figura onde são indicados os valores médios de interrupções voluntárias da gravidez por mulher no período 1976-1997.


Por outro lado, considerando que muitos apontam os custos para o SNS que a despenalização da IVG acarretaria (presumindo à partida que o SNS a suportará, o que não é certo) é útil confirmar na experiência francesa que tal não é verdade.

De facto, a maioria das IVGs faz-se até às 6 semanas, como indicado no gráfico seguinte, com cerca de 56% das intervenções realizada com recurso a fármacos, nomeadamente mifepristone ou a pílula RU-486, o que, segundo Elizabeth Aubény, implica serem os custos da IVG para o Estado Francês bem menores do que os custos do tratamento das complicações derivadas do aborto clandestino. E claro, são eliminadas as consequências do aborto clandestino (infecções generalizadas, infertilidade e morte).


De realçar ainda que não obstante a IVG ser legal em França este país tem a 2ª maior taxa de fecundidade da União Europeia.

Como nota final, constata-se que há um número elevado de portuguesas que realizam em França o que é criminalizado em Portugal, embora o número tenha diminuido desde que é possível realizá-lo em Espanha.



(Publicado simultaneamente no EuVotoSim e no Diário Ateísta)